segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Solidão e Silêncio: um desafio aos barulhos e fugas

Deserto, silêncio, solidão. Parece coisa de doido, gente anti-social, daqueles tipos esquiisitos, daqueles fulanos que não se aceitam e por isso não aceitam os outros. Resolvi escrever-te hoje, caro Filoteu, meu brother da net (e minha sister também, claro) que, de verdade, no duro, esse trio aí trás um poder-power que é a fina flor do abacaterol. Vivemos imersos nos barulhos mais doidos e as pessoas parece que não sabem mais parar, refletir, ouvir. Deixar o silêncio trazer nossos fantasmas, nossos medos e tratar tudo isso para enriquecer e fazer acontecer o processo do nosso amadurecimento e formação (humana, espiritual, profissional e o resto). .
Uma grande serva de Deus disse algo muito importante: "Mas, como pode alguém, na prática, ir ao deserto e conseguir a solidão? Parando! Pare! Deixe que a estranha e mortal inquietude do nosso tempo caia dos seus ombros, como um manto empoeirado e gasto – este manto que um dia, talvez, tenha sido considerado belo. A inquietude, o desassossego já foram considerados poeticamente como um tapete mágico e voador em demanda de um apressado amanhã. Hoje ele perdeu sua bela máscara poética e não passa de uma fuga de si mesmo, um desvio da jornada para dentro de si mesmo que todo homem deve empreender para encontrar-se com Deus nas profundezas de seu próprio coração. Pare! Olhe bem no fundo das motivações que a vida lhe oferece. Pare! Levante a Deus as mãos e o coração, pedindo-lhe que a força do seu Espírito possa desfazer e levar embora todas as teias de temores, egoísmos, cobiças e muitos outros fios em que se enreda e se emaranha seu coração. Que as labaredas deste Espírito desçam até você, até todos nós, devastando o que foi mal construído e deixando coragem para reconstruir direito!"
 O que existe no silêncio que ele incomoda tanto? O que existe na solidão ao ponto dela parecer tão avassaladora, perturbadora? Como disse acima, ela questiona, ela põe contra a parede, nos pomos diante da verdade de Deus e da nossa verdade. Resta-nos ter diante dos olhos e do coração aquela grande possibilidade de responder aos apelos de Deus, às interpelações fortes de uma humanidade que de algum modo cobra-nos respostas ou atitudes como respostas. Parar, pensar, rezar, refletir, contemplar. Calar, silenciar. Silenciar não só os barulhos externos, mas sobretudo os de dentro (que fazem uma zoeira amuada). E daí ser honesto nesta escuta do silêncio ou do que está por trás do silêncio ou dentro dele. Olha Filoteu, não quero viajar na maionese, não tenho intenção de ser meio filosófico ou dizer coisas vagas, mas convidar-te a acolher as possibilidades desafiantes e radioativamente chernobiticas do deixar-se interpelar e não ter medo do que poderá vir à tona. Dou a palavra para uma staretz do deserto:
"E todas estas paradas, nossas idas ao deserto, não necessariamente precisam ser feitas em um lugar retirado, mas podem também ser feitas em pleno barulho e plena atividade da vida diária de cada pessoa, qualquer que seja o seu estado de vida. São paradas que trazem ordem à alma, a ordem de Deus. E esta ordem divina trará consigo a tranquilidade e a serenidade do mesmo Deus. E com ela virá o silêncio interior". Ela ARRASOU! Que pensas tu?
Ei cara ou careta, fica sabendo que o deserto não é um lugar somente feito de paz sossegada ou de comodismo pessoal, individualizante. Vixe! Vai na contra-mão de tudo isso! E como! O deserto é também lugar da luta, lugar da descoberta de nossas sombras e mentiras, lugar onde o espelho do auto-conhecimento será posto diante da minha cara e eu ou taco a cara no muro ou enterro a cara por um lado. Por outro, eu me proponho de verdade a dar um rumo diferente. Insisto que o deserto é lugar da luta contra o mal. Na antiguidade, o deserto era considerado lugar dos demônios e que eles punha à prova quem deseja entregar-se aos exercícios espirituais e crescer. Não te espantes, mas é assim mesmo. Quando mais se reza, mais assombração aparece. Tiro e queda, é batata, não tem por onde correr. Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come e se se esconder o bicho acha. Por isso, nada de medo e olha de frente as coisas.
Hoje recordamos Santo Antão, um monge eremita que viveu no deserto do Egito lá pelo século III e IV. Conta a biografia dele, escrita por outro gigante da fé, chamado Santo Atanásio, que Antão ouviu no evangelho a proposta de Jesus ao jovem rico: 
"Se queres ser perfeito, vai vendo tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres. Depois, vem e segue-me, e terás um tesouro no céu" (Mt 19, 21).
E o que fez Antão? Achou que era uma ordem de Deus para ele. Por isso mesmo, "repartiu com os habitantes da aldeia as propriedades que herdara da família (possuía trezentos campos lavrados, férteis e muito aprazíveis) para que não fossem motivo de preocupação, nem para si próprio nem para a irmã. Vendeu também todos os móveis e distribuiu com os pobres a grande quantia que obtivera, reservando apenas uma pequena parte por causa da irmã. Entrando outra vez na Igreja, ouviu o Senhor dizer no evangelho: "Não vos preocupeis com o dia de amanhã" (Mt 6, 34). Não podendo mais resistir, até aquele pouco que restara deu-o aos pobres. (...). Quanto a ele, a partir de então, entregou-se a uma vida de ascese e rigorosa mortificação, nas imediações de sua casa".
Como se deu essa vida de mortificação. Antão, antecipou o que São Bento, dois séculos depois apresentou aos monges como meio de santificação: a oração e o trabalho.
Diz Santo Atanásio que Antão "Trabalhava com as próprias mãos, pois ouvira a palavra da Escritura: 'Quem não quer trabalhar, também não deve comer' (1Ts 3, 10). Com uma parte do que ganhava, comprava o pão que comia; o resto, dava aos pobres". Prossegue Santo Atanásio: "(Antão) Rezava continuamente, pois aprendera que é preciso rezar a sós sem cessar (1 Ts 5, 17). Era tão atento à leitura que nada lhe escapava do que tinha lido na Escritura; retinha tudo de tal forma que sua memória acabou por se substituir aos livros". 
Caraca, veio, esse foi um testemunho ELETROCUTANTE! ARRASANTE! Na oração e no trabalho, na meditação assídua da Palavra de Deus, esse homem no deserto lutou contra o demônio e se tornou nas vezes que foi chamado para socorrer a Igreja, um sinal fortíssimo de Deus, do poder de Deus, da autoridade de Deus. Antão, o pai dos monges é também pai de todo aquele que no silêncio e na solidão, vencem seus fantasmas, voltam-se para Deus e purificam-se, crescem na presença divina. 
E aí, Filoteu, o teu deserto, o teu silêncio, a tua solidão, onde estão, como estão, o que têm feito em ti?
Um abraço e coragem para entrar no deserto vencendo teus medos para ser todo de Deus.
Pe. Marcos.

2 comentários:

Fagner disse...

Padre Marcos. Tenho sentido falta de suas "formações" nas missas do Projeto Juventude, do Shalom da Paz. Gosto muito de suas bem colocadas e sábias palavras. Frequentemente me encontro em desertos,assim nessas lutas diárias, talvez precise ficar mais atento a mim mesmo!

Unknown disse...

Padre, o senhor sabe mesmo onde mexer, a ferida exata! Muito obrigada pelo seu sim e pela suas "formações" nas missas do projeto Juventude. Obrigada por essa sua orientação, você soube ser luz do mundo na minha vida hoje! Shalom!

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